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segunda-feira, 6 de setembro de 2021

O ESCRAVO (Conto)

Era um pequeno vilarejo que não evoluía com o passar dos anos, nem com o passar das décadas. Quem ali habitava acostumara-se a pouco pão, aliás, acostumara-se às migalhas da mesa de poucos que tinham acesso às benesses do honorário público vindo da coroa ou dos coronéis que ali mandavam.

Era uma vila pobre, feia, mal cuidada e sem atrativos. A população limitava-se a baixar a cabeça e acatar todos os comandos dados por aqueles que direta ou indiretamente cumpriam, sem questionar, às ordens de figuras que detinham um pseudopoder político ou econômico. Ali não se estimulava a leitura, nem a reflexão dos fatos do cotidiano, nem dos poucos textos que se lhes eram permitidos decodificar.

Um grupo, no entanto, sem muitas pretensões, ousou pensar diferente daqueles que ali ocupavam um espaço físico, mas renegavam o espaço intelectual e satisfaziam-se somente com o suprir de suas necessidades básicas: uma cuia de farinha e um pouco de água salobra. Esse grupo, a exemplo do mito da caverna, de Platão, começou a mostrar, aos poucos, a realidade de outras vilas e vilarejos que eram próximos: expor abertamente os avanços intelectuais e sociais conquistados pela população dos aglomerados vizinhos, as escolas que surgiam e a possibilidade de dias e condições melhores de vida e sobrevivência, fustigando o fantasma da sobrevida que desde muito dominava a pequena população.

Escravagistas, escravocratas e escravizados! A população era basicamente composta por esses personagens. Sem muito que esperar da vida, pois assim já estavam acorrentados por gerações, não vislumbravam mudanças, mesmo estas sendo impostas pela modernidade que se aproximava e já trazia seu odor de liberdade e crescimento, diziam sempre a mesma afirmação exclamativa “Sempre foi assim!”

Diante de tal realidade do vilarejo, escravagistas, escravocratas e escravizados viviam e conviviam em um círculo vicioso de parasitagem dos poucos recursos que chegavam da parte da coroa ou da capitania à qual pertencia. Mas, diante desta população tão conformada e destinada a perpetuar tal condição, o que mais se destacava eram os escravos. Não pela sua força de trabalho ou rebeldia, ou desejo de fuga ou sonho de liberdade, mas sim pelo comodismo que sempre lhes foi garantido com aquela pequena cuia de farinha e um pouco de água salobra.

Ah, os escravos!… São os piores na evolução e crescimento social e intelectual, pois não aceitam o conceito e a condição de sua classe. Odeiam a ideia de liberdade, fustigam e atacam os que se propõem a ter pensamento próprio, reflexões baseadas em fatos sociais ou históricos, mas, acima de tudo, sentem inveja da cuia de farinha e do copo de água salobra de outro ser que questiona firmemente a condição de acatador de ordens.

Pois bem. Dentre estes havia um escravo. Pobre na sua condição de homem, pobre na sua perspectiva de ter um espírito evoluído, miserável na graça de agradecer aos que, em algum momento da vida, trataram suas feridas com um pouco de vinagre e azeite. Não tinha nem nome, pois não o merecera, e, se o tinha, foi-lhe tomado por falta de merecimento. Estava sempre com olhar furtivo e diálogos que procuravam demonstrar uma felicidade que não existia, ou uma simpatia frágil, pois o sorriso demonstrava uma inveja doentia que corroía a alma de quem estivesse por perto.

Tal criatura, tomando conhecimento de que, dentre os seus havia surgido uma brasa de liberdade, indignou-se com a ideia. Tratou de conspirar junto com seus escravizadores para que tal motim fosse extirpado de seu vilarejo, pois pensar não era coisa para escravos, nem questionar a água salobra e a cuia de farinha e, o pior, sonhar com a liberdade, mesmo que fosse intelectual ou espiritual. E dizia aos prantos, no campo de trabalho ou na senzala de poucas telhas que não o protegia nem da chuva, nem do frio e tampouco do calor: NÃO PODE, SEMPRE FOI ASSIM!

Entregando aos inquisidores/escravizadores os que sonhavam com a possibilidade de uma vida melhor, gozou com um sorriso a punição destes, e mais regalo teve quando tantos tiraram a própria vida para não abandonar o sonho de liberdade nem a possibilidade de fuga do vilarejo. Foram momentos tensos para a pequena população, que depois de tal acontecido, assumiu a condição de escravizada pelo próprio ato de não se rebelar e aceitar os mandos e desmandos de quem só sabia parasitá-los.

E o escravo? Depois de dias sorrindo, cantarolando e achando que agora fazia parte do grupo de escravagistas e escravizadores, foi amarrado no pasto da capela do vilarejo, e surrado até perder as forças, deixado ali em carne viva para que todos vissem que pior que a ideia de liberdade é trair e conspirar contra os seus por uma cuia de farinha e um pouco de água salobra.



Davi Nobre

Professor de Língua Portuguesa



4 comentários:

  1. Maravilhoso o seu texto Davi! De uma ironia refinada, propõe uma ampla reflexão sobre as mazelas sociais e sobre as relações de trabalho que perpetuam no seio da sociedade. Mudam-se as cuias de farinha, mas a falta de uma identidade de classe permanece. Já vi muitos escravos intimidando outros escravos por terem recebido dos Senhores o direito de usar uma cuia maior e uma cabaça para esfriar um pouco a água salobra.

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  2. Excelente texto meu amigo. Parabéns.

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